quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

"Marcelo é escravo da sua popularidade" - Daniel Oliveira


O Presidente falou ao país e deixou vários "recados", como se tornou hábito dizer na gíria política. Todos me parecem, em relação ao que se passou no ano de 2017, pacíficos. Correu bem na economia e em indicadores sociais como o emprego. Para melhor compreensão, correu bem até 16 de junho de 2017, e assim torna mais fácil explicar a sua mudança de comportamento. Correu mal por causa dos incêndios, que para o Presidente consomem toda a segunda metade do ano. Mesmo sabendo-se que o que falhou nos incêndios também tem alguma coisa a ver com o que supostamente correu bem: as contas públicas.

Os recados para o futuro são também óbvios. Uns foram meramente poéticos - "reinventar o futuro" ou "reinventar confiança" é conversa de autoajuda que serve para o que cada um de nós quiser. Outros foram mais claros e é fácil concordar com eles: os portugueses, para se sentirem seguros, não precisam apenas de emprego, precisam de saber que, "nos momentos críticos, as missões essenciais do Estado não falham nem se isentam de responsabilidades". Isto deveria levar a um debate interessante sobre quais são as funções essenciais do Estado e as condições que temos para fortalecer quando nos são exigidas e escrupulosamente cumpridas metas orçamentais que nos obrigam, todos os anos, a ter um superavit estrutural que só pode resultar em esvaziamento de funções do Estado. Não sei se o Presidente está disponível para promover um debate tão político e tão pouco consensual como este.

Manda a tradição das relações institucionais que o Presidente envie recados aos outros órgão de soberania mas que estes se abstenham de o fazer com o Presidente. E bem, já que o Presidente tem um papel moderador. Mas cá estamos nós, portugueses sem responsabilidades institucionais para o fazer. E é especialmente importante fazê-lo com um Presidente que escolheu uma presença tão assídua no espaço mediático.

Marcelo Rebelo de Sousa goza de uma enorme popularidade. Apesar de só ser possível num Presidente que não tem funções executivas e raramente é obrigado a desagradar a alguém, ela é útil para a defesa do sistema democrático num tempo de tanta descrença na política (não estou certo que tenha havido um tempo em que o sentimento tenha sido o oposto, mas adiante). Também não tenho qualquer problema com os afetos de Marcelo. Apesar de me interessar mais o que um político pensa e faz do que aquilo que sente, compreendo que a empatia é um elemento fundamental de liderança. O meu problema com Marcelo é mesmo o tipo de liderança que definiu, de forma consciente e premeditada, para o seu mandato.

Todos os dias Marcelo aparece na televisão a dar opinião sobre tudo. Se há legionela ele vai ao hospital, se há um acidente ele chega antes dos bombeiros, se há um teatro que vai fechar ele aparece a fazer promessas que não pode cumprir. Quase sempre em cima do momento, sem conhecer as implicações daquilo sobre o qual está a intervir. Em geral, tem-lhe corrido bem. Como não é adivinho, acabará por lhe correr mal.

Marcelo é a personificação das redes sociais, sem a parte do ódio e da indignação. E isso não é muito avisado e cria problemas ao funcionamento da democracia. Socorre-me das palavras de Valdemar Cruz no Expresso curto de hoje: "Decorre daqui uma enorme pressão sobre o sistema político e uma excessiva dependência comunicacional do que possa ser em cada momento a opinião do P.R. Não é seguro que o prolongar desta situação seja bom para a democracia, ou salutar para a convivência democrática ente os diferentes órgãos de soberania."

O imediatismo da intervenção presidencial acaba por obrigar Marcelo (ou é essa a sua natureza) a surfar na espuma dos dias. Isso implica que, em vez de liderar a opinião pública, como acreditaram os que no Governo julgavam que o seu apoio institucional neutralizava a oposição, ele é liderado pela opinião pública. A enorme popularidade do Governo até aos incêndios não resultou do apoio de Marcelo, o apoio de Marcelo é que resultou da enorme popularidade do Governo. Marcelo vai tentando representar, a cada momento, o sentimento que julga ser dominante no país. Isso tem um lado positivo: o país precisa de ter um espelho no sistema político. Mas liderar não é apenas representar o sentimento geral, é canalizar o sentimento geral para um determinado projeto político para o país. Parte positiva, a sublinhar; não sendo um populista, o Presidente não explora os lados mais sombrios de todos os povos - o ódio, a xenofobia ou a descrença na democracia.

Não é por acaso que todos os comentadores sabem que Marcelo Rebelo de Sousa vai vetar a nova lei de financiamento dos partidos. Ninguém pode adivinhar a sua opinião sobre o assunto e ninguém sabe que argumentos usará. Mas todos perceberam que, por boas ou má razões, de forma informada ou totalmente desinformada, a lei é muito impopular. E isso chega para sabermos como se vai comportar o Presidente. Porque intuímos que, independentemente de qualquer consideração política, vetará qualquer lei que seja impopular e apoiará que tenha boa aceitação pública. Uns acharão que isso é positivo, dando ao país uma válvula de escape que impeça a aprovação de leis que o povo não quer. Em parte têm razão, se essa opinião geral não se limitar a ser uma indignação inconsistente e inconsequente. Uma das razões para optarmos pela democracia representativa é para que os humores coletivos de cada momento não tornem a condução do destino coletivo num vaguear sem rumo. Por isso, é preocupante quando o comportamento do árbitro do nosso sistema depende totalmente dos apupos e aplausos das bancadas. Estar atento à vontade do povo não é o mesmo que ser escravo da popularidade. Porque ela, sendo o seu principal instrumento político, também é o seu principal limite.

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